quarta-feira, setembro 29, 2004

Think different

É fato que eu sempre me impressionei profundamente com a capacidade que os autores japoneses têm de realizar obras absolutamente criativas, com narrativas e enredos extremamente envolventes. Sempre acreditei que esse meu deslumbramento se justificava porque eles de fato são muito criativos mesmo, e realmente conseguem liberar por completo a imaginação, o subconsciente, e colher muito mais frutos dessa prática.

Só que nunca me dei conta que, na verdade, muitas das obras japonesas são assim interessantes porque justamente são criações de mentes que funcionam de maneira muito, mas muito diferente.

Uma das coisas mais enraizadas que há na cultura ocidental é a maneira de dissertar, de expor idéias, e também de contar histórias. Basicamente, nossa retórica e narrativa.

Justamente por isso que não é difícil ficar deslumbrado (ou sentir repulsa -- sei lá, deve acontecer) ao se deparar com o produto de uma personalidade desenvolvida à distância de todos esses moldes, impostos, por assim dizer, pela nossa cultura. Não há melhor exemplo de tal personalidade do que os japoneses.

Se analisarmos as fundações de nossa retórica clássica, não demora muito para que encontremos o seguinte modelo de etapas: introdução das idéias, personagens, ambiente etc, seguida de um desenvolvimento baseado em apresentar argumentos sólidos para justificar a opinião do autor, ou ainda, um conflito, que geralmente se baseia em experiências de ruptura com o cotidiano dos personagens, com o grande potencial de transformá-los e, finalmente, uma conclusão que reafirme a idéia principal ou, em uma narrativa, que represente um ponto de retorno do conflito, muito comumente apresentando quais mudanças esse conflito trouxe para os personagens.

É bastante raro encontrar, em obras ocidentais, uma total subversão desse modelo. Estranhamente, é como se houvessem até mesmo regras a ser seguidas para se fugir do modelo básico. Como nos muitos casos em que altera-se a conclusão de maneira a atingir um anti-clímax, ou ainda algum outro tipo de desfecho inesperado. Em narrativas muitas vezes é desrespeitada a sua ordem cronológica, o que é um recurso estilístico até interessante, mas muitas vezes excessivo e até supervalorizado nos dias de hoje, sobretudo quando acontece no cinema.

Outro ponto importantíssimo é o fato que os ocidentais tendem a ser extremamente individualistas, egocêntricos até. O foco está quase que totalmente no autor, relegando o leitor ou espectador a mero elemento passivo. Isto é, o autor impõe suas idéias como sendo mais corretas e valiosas do que aquelas que seu receptor possa ter, sem muita chance para discussão.

Percebe-se isso tudo com muita clareza inclusive no nível linguístico, e com nuances incríveis. Mesmo em uma situação corriqueira, um diálogo cotidiano, essas características aparecem de maneira inconfundível. Por exemplo, uma pessoa que goste de Spielberg poderia muito bem dizer a um amigo: "O último filme do Spielberg é bom. Veja-o." Esse tipo de discurso é extremamente típico em línguas ocidentais. Estamos sempre querendo saber que filme, disco ou livro "é bom", e por aí vai. Apesar de que, no plano racional, entendemos que aquela pessoa gostou do último filme de Spielberg, o fato é que ela está emitindo sua opinião como se fosse uma verdade universal, em detrimento de qualquer discordância que possamos ter.

Claro, nossa razão tem a capacidade de abstrair perfeitamente a real semântica da frase, mas a sua 'dureza' será de qualquer maneira captada pelo nosso lado subconsciente e também pelo emocional. É por isso que um comentário desse tipo poderia até mesmo magoar uma pessoa hipersensível, ou incitar uma resposta violenta de uma outra que tenha tendência para a discussão (e que também vai dizer o que o Spielberg "é" ou "não é").

Porém, se observássemos o mesmo diálogo acontecendo em japonês, o fã de Spielberg em questão tipicamente se expressaria aproximadamente da seguinte maneira: "O último filme de Spielberg me agradou bastante. Acredito que você iria gostar muito de vê-lo." Isto porque a própria cultura deles condicionou a língua de tal maneira que as expressões utilizadas para se emitir opiniões são totalmente distintas daquelas que visam comunicar fatos ou verdades estáticas, imutáveis. O discurso aqui empregado não dá total valor à opinião expressada, desprezando a do ouvinte, mas sim oferece uma sugestão amigável, sinalizando a possiblidade de que se tenha uma opinião semelhante.

Analogamente a isso, a retórica e a narrativa japonesas destacam-se por ser extremamente dependentes do leitor, espectador ou ouvinte, exigindo bastante que ele leia nas entrelinhas, interprete os fatos, ofereça opiniões. Não surpreendentemente, elas oferecem modelos básicos que divergem bastante do cânone introdução, desenvolvimento e conclusão.

Como um bom exemplo disso podemos citar o belo filme de Akira Kurosawa, Rashomon. Kurosawa era um sujeito muito esperto. Evidentemente, foi o cineasta japonês mais influenciado pela cultura ocidental, mas, em contrapartida, foi também o que mais influenciou o cinema ocidental também. Isso fica muito claro quando se vê Rashomon.

O filme dispõe-se a discutir a moral humana, mas não se principia introduzindo o tema explicitamente. O núcleo do filme é, segundo seus próprios personagens, "um acontecimento horrível", o assassinato do samurai Takehiro e o estupro de sua mulher Masako. O crime é então apresentado em várias versões completamente diferentes e contraditórias. Aí, uma mudança brusca acontece, quando fica implícito que um dos poucos personagens sérios pode estar contando uma mentira. O filme termina, então, mudando para um tom completamente oposto, sugerindo a idéia que nem tudo está perdido (impressão que se tem até os 4 últimos minutos).

Peço desculpas pela minha descrição extremamente vaga de Rashomon (mas os que ainda não o viram vão me agradecer por isso).

O fato é que a estrutura narrativa desse filme é bastante típica não só literatura japonesa e chinesa, mas também em sua prosa dissertativa, e é conhecida como kishoutenketsu, que significa vagamente 'apresentação, desenvolvimento, mudança e conclusão', mas esses termos têm significados completamente diferentes daqueles aplicados na retórica ocidental.

No kishoutenketsu, o ki é uma mera apresentação, e que raramente introduz o tema, mas serve apenas para familiarizar o espectador com o espírito, por assim dizer, da obra.

Já no desenvolvimento, shou, é que geralmente o tema é introduzido, e são apresentados diversos pontos de vista ou idéias sobre ele, sendo que possivelmente elas podem ser conflitantes.

A terceira parte, ten, caracteriza-se por uma mudança brusca no próprio tema ou no foco narrativo, de maneira que a relação entre o novo tema e o anteriormente apresentado possivelmente não é óbvia ou esperada.

Por fim, a conclusão nesse estilo, ketsu, apresenta uma nova mudança de foco com uma finalidade que não é conclusiva no sentido de reiterar uma idéia apresentada anteriormente, mas sim a de deixar uma idéia (talvez inédita) no ar. Em japonês, ketsu pode ter o significado de implicitude, sugestão.

Rashomon é um filme magnífico justamente porque, ao invés de impor preconceitos sobre a moral humana, visando a levar seu espectador a concordar com uma conclusão definitiva que lhe seja apresentada; faz justamente o contrário, extrai dele uma conclusão pessoal, às vezes escondida, e dificilmente definitiva. É possível ver o filme pela primeira vez e achá-lo negro e pessimista, e então, anos depois, revê-lo considerando-o um libelo humanista.

Enfim, você conseguiu ler esse post gigantesco até aqui e está (ou não) pensando por que diabos é que eu escrevi tudo isso. Coincidência ou não, eu também já não sei muito bem. Mas a verdade é que pensar de maneira diferente é sempre bom, é sadio. Isso significa, muitas vezes, acatar o pensamento do outro, pois é bem possível que ele não esteja errado. Mas também, tomar cuidado porque ele não está sempre certo. Nem você.

Um comentário:

Anônimo disse...

Hey there!

Fantastico o seu post!!! Curti muito o que voce escreveu, trata-se de uma sintese do que eu tambem penso a respeito das divergencias de mentalidade entre a nossa cultura e a extremo-oriental (a mentalidade indiana é diferente das 2 apresentadas por voce, e segue um 3. modelo; em outra oportunidade eu a descrevo, ou voce mesmo pode fazer uma googlada e descobrir algo a respeito).

Pra finalizar, uma materia que eu li esses dias, e que serve de complemento para o que voce escreveu em seu post (alias, nao exatamente como complemento, mas sim como prova para alguns dos argumentos).

http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=569

abracos,

Marcelo

PS: Voce percebeu que seu post foi escrito utilizando a retorica ocidental? ;-)